
O ponto cego do debate: por que os Brics não nos salvam
26 de julho de 2025
O ponto cego do debate: por que os Brics não nos salvam
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Prevenção de escalada requer diplomacia altamente qualificada, com pleno domínio dos instrumentos jurídicos internacionais em jogo
06 de AGOSTO de 2025
POR: JOSÉ ANDRÉS LOPES DA COSTA
A decretação da prisão domiciliar do ex-presidente Jair Bolsonaro ocorre em um momento diplomático extremamente delicado para o Brasil. Desde julho, o país passou a figurar formalmente como destinatário de sanções econômicas unilaterais por parte dos Estados Unidos, com fundamento na International Emergency Economic Powers Act (IEEPA).
A resposta norte-americana à recente decisão judicial brasileira, indicando que novas sanções podem ser adotadas, não constitui uma reação isolada. Trata-se de um possível novo estágio de um processo que já foi juridicamente inaugurado, cujos desdobramentos são amplos, extraterritoriais, automáticos e dificilmente reversíveis.
A IEEPA é um instrumento legislativo norte-americano criado em 1977, que autoriza o presidente dos Estados Unidos a declarar estado de emergência nacional em resposta a ameaças consideradas incomuns e extraordinárias à segurança nacional, à política externa ou à economia do país.
A partir dessa declaração, o Poder Executivo obtém poderes amplos para impor sanções econômicas, financeiras e comerciais contra governos, indivíduos, entidades ou setores inteiros, mesmo sem a necessidade de aprovação prévia do Congresso. Sua aplicação é operacionalizada por meio do Office of Foreign Assets Control (OFAC), unidade do Departamento do Tesouro responsável por implementar e fiscalizar as sanções.
No caso brasileiro, a justificativa formal adotada pela Casa Branca para a decretação da emergência foi a suposta ameaça representada por determinadas ações do governo brasileiro à estabilidade democrática e ao arcabouço normativo internacional. Essa base legal distingue-se de outros fundamentos frequentemente utilizados para a imposição de tarifas ou barreiras comerciais.
A China, por exemplo, foi alvo de medidas com fundamento na seção 301 do Trade Act, voltadas à proteção de propriedade intelectual e desequilíbrios comerciais. Já a União Europeia e o Canadá foram enquadrados na seção 232, vinculada à segurança nacional em setores estratégicos como o aço e o alumínio.
O Brasil, ao contrário, foi diretamente incluído no regime da IEEPA e este foi o único fundamento jurídico para a imposição das tarifas de 50%. A principal evidência de que a motivação central não foi comercial está na própria estrutura das sanções tarifárias anunciadas.
Em julho, o governo americano divulgou uma lista inicial de produtos brasileiros sujeitos à tarifa de 50%, para em seguida publicar, no dia seguinte, uma nova lista com 694 produtos excluídos da medida. Um percentual relevante da pauta brasileira exportadora foi, assim, retirada da sanção. Esse tipo de correção seletiva não é compatível com a lógica de proteção comercial nem com a defesa de setores internos. O que se observou foi um recuo tático, com função diplomática: preservar margens de diálogo com o Brasil enquanto se mantém o enquadramento político.
O precedente mais próximo e ilustrativo desse tipo de escalada é o da Rússia. Após a invasão da Crimeia em 2014, e mais intensamente a partir de 2022, os Estados Unidos aplicaram sucessivas rodadas de sanções com base na IEEPA, que resultaram no congelamento de centenas de bilhões de dólares em reservas internacionais, exclusão de bancos do sistema Swift, bloqueio de exportações de tecnologia, restrições a companhias aéreas e de navegação, paralisação de investimentos estrangeiros e suspensão de contratos de seguros e resseguros.
O impacto foi imediato e profundo. O rublo sofreu desvalorização acentuada, a inflação disparou e o sistema bancário russo precisou ser reestruturado internamente para operar com moedas alternativas e circuitos paralelos de compensação.
A situação brasileira, evidentemente, não é idêntica em termos de contexto geopolítico, mas os instrumentos jurídicos em jogo são os mesmos. Uma vez acionada a IEEPA, o OFAC pode emitir ordens administrativas impondo sanções financeiras a bancos brasileiros, restringindo transações com dólar, impedindo acesso a instituições de clearing e proibindo contratos com empresas americanas ou que tenham qualquer elemento de conexão com os Estados Unidos.
O congelamento de ativos depositados em bancos internacionais, inclusive reservas em Nova York e títulos do Tesouro americano em poder do Banco Central brasileiro, é uma medida tecnicamente viável sob essa legislação.
Além disso, contratos de licenciamento de software, serviços de nuvem e tecnologia de ponta com empresas como Microsoft, Oracle ou Amazon Web Services podem ser interrompidos, com impacto direto em setores bancários, logísticos e governamentais.
Companhias aéreas e marítimas brasileiras podem enfrentar a recusa de serviços em aeroportos e portos estrangeiros, por força de cláusulas contratuais vinculadas a sanções. O sistema de resseguros internacional, fundamental para o setor de infraestrutura e energia, também pode ser desativado com base na falta de cobertura em ambientes sancionados.
O acesso ao sistema Swift, embora gerido formalmente na Bélgica, está sujeito à coordenação estreita com autoridades americanas e já foi utilizado como ferramenta de exclusão internacional. No caso russo, bancos estratégicos foram removidos do sistema, o que inviabilizou pagamentos internacionais e forçou a criação de redes alternativas com países aliados. O Brasil, com elevada dependência do dólar e das infraestruturas reguladas pelo Ocidente, apresenta maior vulnerabilidade estrutural nesse tipo de cenário.
Adicionalmente, o contexto geopolítico mais amplo exerce influência relevante sobre a interpretação que os Estados Unidos fazem da conjuntura brasileira. A aproximação do Brasil de países como Rússia, Irã, China e Venezuela, no âmbito do Brics ampliado, tem sido observada com cautela por diplomatas e analistas internacionais.
Embora não configure uma aliança formal em termos de segurança, o alinhamento político e econômico a regimes considerados adversários da ordem liberal internacional contribui para a formação de um ambiente de desconfiança. Nesse contexto, discursos que propõem a substituição do dólar por uma moeda alternativa para transações internacionais, ainda que retóricos, reforçam a percepção de que o Brasil poderia estar se afastando dos marcos tradicionais da cooperação financeira ocidental e desafiando a hegemonia do dólar, o que para os EUA significaria perder uma guerra, segundo afirmou o próprio presidente americano.
Importa registrar que a Lei Global Magnitsky, aplicada no caso do ministro Alexandre de Moraes, é um instrumento específico voltado a sanções individuais por violações de direitos humanos. Ela permanece em vigor de forma paralela à IEEPA, mas sua abrangência é mais restrita. O risco concreto está no fato de que a inclusão do Brasil como país sancionado sob a IEEPA abre caminho para a adoção de medidas amplas e setoriais, sem necessidade de nova fundamentação ou trâmite legislativo. Basta uma ordem executiva ou resolução administrativa do OFAC para que novas restrições entrem em vigor, inclusive com efeito imediato.
Nesse contexto, a prisão de Bolsonaro, ainda que juridicamente amparada e restrita ao sistema judicial brasileiro, é observada por Washington dentro de um quadro mais amplo. A percepção de que o episódio possa gerar instabilidade institucional, especialmente se associado a embates públicos entre poderes ou manifestações de confronto, pode ser interpretada como justificativa suficiente para aprofundar a resposta americana.
A prevenção de uma escalada requer uma diplomacia altamente qualificada, com pleno domínio dos instrumentos jurídicos internacionais em jogo. Mais do que argumentar em favor da soberania jurisdicional, o Brasil precisa demonstrar institucionalmente que suas decisões seguem os parâmetros do Estado de Direito e que não há ruptura democrática em curso. Isso passa por comunicação técnica, gestão coordenada de riscos e posicionamento estratégico junto a aliados comerciais e diplomáticos.
Não se trata de questionar a legitimidade das decisões judiciais internas, nem de fazer concessões externas. Trata-se de compreender que, no plano internacional, decisões jurídicas e reações políticas estão cada vez mais entrelaçadas por mecanismos automáticos de sanção, cujos efeitos não são simbólicos, mas econômicos, financeiros e reputacionais. Ignorar essa dinâmica seria negligenciar a realidade de um sistema global em que soberania e interdependência coexistem sob tensão permanente.